Quase uma década depois do pioneiro seminário de 2006 do Instituto Cidade em Movimento (IVM), com o tema “Comprar ou Alugar os Bens de Consumo”, qual é o cenário atual, na França, dos serviços de mobilidade na chamada economia de compartilhamento?
Este é o foco do novo trabalho de 45 páginas do professor Jean-Pierre Orfeuil, presidente da Cátedra Universitária do IVM e um dos maiores especialistas europeus em transporte e planejamento urbano.
No artigo “Os Novos Serviços de Mobilidade Fundados na Economia de Compartilhamento – Inventário da França de 2014”, Orfeuil apresenta um relatório detalhado dos avanços conceituais, das estatísticas recentes e das experiências de sucesso (e fracasso) das pequenas e grandes empresas que marcaram a economia de compartilhamento nos últimos anos.
O professor emérito do Instituto de Planejamento Urbano de Paris (Université Paris-Est Créteil) atualiza os temas que ele próprio abordou em 2008, em “Mobilités Urbaines-L’Age des Possibles” (Scrineo, 2008, 192 páginas) – livro que se seguiu ao seminário de 2006, liderado por François Ascher.
Aquela obra foi, talvez, uma das primeiras a tratar diretamente das possibilidades do que hoje se chama de “economia colaborativa”, ou l’economie du partage, ou shared economy, ou, mais precisamente, economia de compartilhamento.
A ERA DO ACESSO
Orfeuil avançou na trilha desbravada visionariamente em 2000 por Jeremy Rifkin, em “The Age of Access”, (no Brasil, “A Era do Acesso”, São Paulo, MakronBooks, 2001), na qual o conhecido conferencista da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, autor do best-seller “O Fim dos Empregos”, antevia nada menos do que o desaparecimento da propriedade, tal como hoje a conhecemos nas economias modernas.
Mas a radical dissociação entre posse e uso de bens de consumo, incluindo carros e casas, intuída por Rifkin (e desenvolvida por Orfeuil e outros), lembra apenas na aparência a velha dicotomia marxista entre “valor de troca” e “valor de uso”.
E, naturalmente, está muito longe de apontar para a abolição da propriedade privada e sua substituição pelo Estado onipotente e totalitário das distopias comunistas.
Bem ao contrário, sustenta Rifkin, aquela dissociação será uma das características centrais das economias maduras no terceiro milênio – que ele chama, sugestivamente, de “hipercapitalismo” – nas quais a posse de muitos bens por muitas pessoas tende a ser cada vez mais onerosa e antieconômica.
Por isso mesmo, será muito mais eficiente, para o consumidor racional, abrir mão da propriedade daqueles bens e trocá-la pelo “direito de acesso” a eles.
Orfeuil reelabora o perfil desse “hipercapitalismo”, e prefere chamá-lo de “economia de compartilhamento”.
O ponto central de sua análise continua sendo a crescente separação entre posse e uso de bens pelos consumidores contemporâneos. Ele vê nessa dissociação a base da “nova economia” do século 21.
Essa nova economia será pautada pelo “consumo colaborativo” e por várias modalidades de “consumo emergente”, e será capaz de superar o impasse antevisto pelos ecologistas no final do século passado, para os quais a reprodução incessante, em escala global, dos padrões de consumo das modernas economias ocidentais acabaria por esgotar os recursos do planeta.
‘AUTOPARTAGE’ E ‘COVOITURAGE’
No caso dos sistemas de transporte e mobilidade urbana, a variável-chave na última década é a explosão dos serviços de internet móvel (celulares e tablets) e das redes sociais.
Orfeuil examina duas tendências de mobilidade não tão recentes, mas que avançaram tanto nos últimos anos que já estão mudando os paradigmas convencionais da economia industrial de bens de consumo e o comportamento social dos consumidores das grandes cidades: o compartilhamento de veículos (autopartage) e o compartilhamento de trajetos (covoiturage).
Embora ainda não tenha se passado uma década, ele nota que já está muito distante o tempo do pioneiro seminário do IVM de 2006, no qual a disjuntiva “comprar ou alugar” ainda tinha como referência serviços convencionais de locação de automóveis nos aeroportos, por empresas do tipo Hertz ou Avis, ou o aluguel de esquis para turistas em estações de inverno.
“A situação é bem diferente em 2014”, diz Orfeuil. E dá como exemplo as dezenas de start-ups de grandes e pequenas empresas de internet na França e nos Estados Unidos, todas ávidas por explorar o florescente mercado da mobilidade compartilhada, seja de carros, de trajetos, de vagas de estacionamento, ou até de despesas de pedágio, mobilizando bilhões de dólares e euros de fundos de capital de risco.
De fato, as siglas dos serviços e aplicativos na internet se multiplicam: Autolib, Car2Go, Wattmobile, ZipCar, Carpooling, BlaBlaCar, Luckloc, Mobizen, Wimoov etc etc.
Segundo a importante consultoria alemã de planejamento estratégico Roland Berger, citado por Orfeuil, o crescimento global da economia da mobilidade compartilhada crescerá a taxas de 35% ao ano até 2020.
Esse crescimento seguirá inversamente proporcional ao declínio do valor simbólico da posse do automóvel nas cidades europeias, nas quais os custos de manutenção e os transtornos causados por dificuldades de estacionamento, congestionamentos e outras desanimam as novas gerações de usuários.
E seguirá também atropelando, ou contornando, regulamentos estatais, legislações trabalhistas e a cultura tradicional das corporações de ofício.
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Na França, por exemplo, a má fama dos taxistas parisienses contribuiu para acelerar a difusão de serviços de compartilhamento de caronas por aplicativos de celulares.
Em São Paulo, foi significativo que, em abril deste ano, mais de dois mil taxistas tenham se reunido num ato de protesto no Estádio do Pacaembu contra o Uber, o aplicativo de compartilhamento de caronas que faz sucesso em vários países.
Pelo Brasil afora, cooperativas e sindicatos de taxistas e motoristas pressionam as autoridades municipais a proibir a “concorrência desleal” dos serviços de mobilidade compartilhada via internet móvel. É uma guerra fadada ao fracasso, no longo prazo.
A economia de compartilhamento se desenvolve necessariamente num cenário de pouca ou nenhuma regulamentação estatal, pautada por relações horizontais de confiança entre membros de comunidades virtuais. Os governos não conseguem acompanhá-la.
O próprio Jean-Pierre Orfeuil não resiste à ironia de citar um artigo de David Brooks, no “New York Times” de setembro de 2014, no qual o grande colunista conservador da imprensa americana observa que as pessoas hoje mais propensas às soluções solidárias e colaborativas são justamente aquelas mais individualistas e conectadas.
Ao comentar o sucesso do aplicativo Airbnb, que oferece serviços de aluguel de hospedagens em casas de pessoas comuns entre viajantes do mundo todo, Brooks apontou o paradoxo fundamental da economia de compartilhamento:
“Os usuários de seus serviços podem ser progressistas no plano político, mas evoluem num quadro econômico muito pouco regulamentado. Eles votam à esquerda, mas clicam à direita”.
Leia aqui a íntegra do artigo de Jean-Pierre Orfeuil (em francês).