Olhos da rua. Para quem conhece a obra da jornalista norte-americana Jane Jacobs (1916–2006), principalmente o livro Morte e Vida das Grandes Cidades (1961), deve ser difícil não relacionar sua ideia aos pequenos cartazes que vemos agora pelos bairros da cidade. Só que não.
Com dizeres Vizinhança Solidária e imagens de olhos para a calçada ou de pessoas com binóculos, uma de costas para a outra (solidária?), as placas indicam “áreas vigiadas pela comunidade”. Mas apesar da referência aos olhos, ou a comunidade solidária, estas sinalizações não têm muito a ver com a propostas de Jacobs.
O lançamento do livro de Jacobs, na década de 1960, foi um marco no debate dos temas urbanos. Frente ao crescimento da indústria automobilística e dos projetos de viários, ela defendia a importância da densidade equilibrada nos centros urbanos, a multifuncionalidade dos edifícios, a preservação da identidade do bairro e a prioridade aos pedestres. Para se compreender sobre identidade local é preciso entender as dinâmicas deste espaço e como as pessoas se apropriam do mesmo, antes de se realizar qualquer intervenção, dizia Jacobs.
Esta expressão resume o conceito mais famoso da ativista Jane Jacobs. Cidade saudável é feita pelo movimento de pessoas nas ruas e espaços públicos. É apenas a ocupação, diversa e intensa que dá vida às cidades. E, mais do que isso: promove a segurança pois enquanto pedestres, criamos “olhos na rua”. Em sua obra, Jacobs ressaltava a importância da vitalidade urbana para se gerar cidades mais igualitárias e também seguras. Conforme Marcos (2016) comenta, Jacobs defendia que o espaço público deveria dar suporte ao movimento de pedestres e à interação das pessoas com os edifícios. E quanto mais ativa, isto é, como mais pessoas circulando a pé, ocupando e desfrutando o espaço público, a cidade seria cada vez mais segura.
Apesar de os olhos da rua por Jane Jacobs terem este princípio completo, que leva em consideração seus cidadãos, os usos e a estrutura física do espaço público, outra visão tem sido levada adiante em cidades brasileiras: a vigilância feita por associações de moradores e o programa Vizinhança Solidária. A iniciativa da Polícia Militar é lei -n.16.771 de 18 de junho de 2018 – e compõe uma ação de monitoramento ostensivo por meio de câmeras, faixas e placas com avisos.
Neste programa, há reuniões de Conselho Comunitário – e segundo moradores, muitos deles se conheceram após anos por meio deste encontro para “se unir contra a insegurança”. Custos existem: famílias envolvidas desembolsam dinheiro para a infraestrutura de monitoramento; já a ação pública se dá por meio de rondas periódicas da PM.
Contudo, o que estes cartazes e o programa Vizinhança Solidária promovem é, em nosso ponto de vista, contrário ao proposto de Jacobs, apesar da alusão aos “olhos da rua”. Em lugar de sair e ocupar a rua, nos incita à reclusão, à desconfiança e ao medo. Uma vizinhança solidária seria aquela que não apenas se ajuda por grupos de WhatsApp com relatos de movimentos suspeitos. Mas que agrega valor à toda à cidade, empática com todos e não apenas entre moradores. Ser solidário apenas com seus vizinhos pode significar o preconceito e exclusão ilegítima de outros cidadãos.
E isso é claro: quando circulamos por áreas movimentadas nos sentimos muito mais seguros que em ruas vazias; se há mais gente na proximidade temos, no mínimo, a quem perguntar, a quem pedir ajuda. Sentimos que a presença dos outros nos protege da surpresa, da cilada, do assalto e da violência.
Mas uma rua vazia, em qualquer lugar do mundo, nos leva ao medo: de que apareça alguém não confiável, de que não tenhamos ajuda nem proteção. A rua vazia é o abandono. É importante entender que não são as câmeras de vigilância nem as mensagens alarmantes em grupos de WhatsApp que podem gerar solidariedade nem segurança em qualquer bairro ou cidade. Isso apenas nos leva à segregação e à paranoia.
Em outras palavras, a argumentação de Jacobs é essencialmente diferente da proposta de Vizinhança Solidária adotada recentemente em cidades brasileiras. No lugar de vigiar cada pessoa diferente que apareça no bairro, ela destacava a importância do desconhecido na prosperidade da cidade:
“O principal atributo de um distrito urbano próspero é que as pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a tantos desconhecidos (JACOBS, 2000, p. 30)”
O conceito de criar olhos na rua era um manifesto pelo protagonismo das pessoas _ elas é que dão o ritmo da cidade. Rebelo (2017), faz referência aos os olhos da rua quando trata de diferentes panoramas; um lugar acessível, dotado de lazer e atividades tende a trazer maior sensação de segurança, enquanto locais isolados e descuidados passam a ser evitados pelas pessoas. Os olhos de uma rua que possui atividades e vida local são, por exemplos, donos de comércios, moradores e transeuntes, entre outros atores do espaço público.
A grande questão é: onde fica o capital social neste modelo de “olhos da rua”? Um modelo que não estimula a vida na rua e a interação cidadã no espaço público – mas que vigia à todo custo qualquer pessoa ou situação diferente, nova. Enquanto câmeras e alertas forem mais importantes do que a diversidade e oportunidade de vivência no espaço público, o quadro de insegurança não deixa de existir. Para constituir espaços mais ativados, a arquitetura e o urbanismo precisam se alinhar às necessidades do capital social e da escala humana.
“A rua é para Jacobs uma autêntica e complexa instituição social onde desde crianças aprendemos a socializar e construir comunidade” (MARCOS, 2016)
https://www.archdaily.com.br/br/786817/jane-jacobs-e-a-humanizacao-da-cidade
https://www.pracas.co/blog/ruas-mais-seguras-com-o-dominio-das-calcadas
http://www4.policiamilitar.sp.gov.br/unidades/dpcdh/index.php/programa-vizinhanca-solidaria/
JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. 1961.