Nas cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes, a mobilidade a pé corresponde a mais de 36% do total de deslocamentos. Os fatores condicionantes do acesso à mobilidade urbana são diversos: renda, gênero, idade, escolaridade, inserção no mercado de trabalho, limitações físicas e tantos outros. É imprescindível reconhecer que no Brasil e grande parte dos países da América Latina, a mobilidade é uma questão cultural, política, econômica, mas principalmente, social. Quem de fato acessa a cidade?
O direito de ir e vir torna-se conquista diária para a grande parcela da população com condições socioeconômicas reduzidas. Para além de questões como infraestrutura básica de mobilidade, um estudo da ANTP aponta um dado interessante de se observar: a apropriação do espaço público para o deslocamento urbano é proporcional à condição de renda. Ou seja, quanto menor a renda do indivíduo, mais ele se desloca a pé, quanto maior, mais ele se desloca em veículos motorizados (transporte público seguido do transporte individual).
Foto: divulgação IVM Brasil
Pedestres se arriscando a atravessar na Av. Cruzeiro do Sul. Fonte: Vivian Reis, G1A partir desse dado, confirma-se o que pode parecer óbvio: as dicotomias sempre ressaltadas entre periferias e regiões centrais, sendo as primeiras pouco ou nada servidas de infraestrutura (básica, inclusive), a desproporcionalidade entre a renda média dos cidadãos e o quanto gastam para se deslocar…
Esse dado, porém, associado a um aspecto cultural específico pode revelar algo mais. Em praticamente todos os países em que há forte desigualdade socioeconômica o carro passou a ser visto como objeto em superação pelas classes mais abastadas (deslocar-se a pé ou de bicicleta passa a ser valorizado) e de realização pessoal pelas classes menos abastadas (status do carro, provação do poder aquisitivo).
Ou seja, a medida que caminhamos para uma superação da ideia de transporte, isolado, esvaziado de subjetividade e, portanto, incoerente com a complexidade da cidade contemporânea, a cultura, hegemonicamente controlada pela elite, vem se mostrado incapaz de dialogar com as populações minorizadas socialmente e economicamente no sentido de caminharem juntos!
Pedestres se arriscando a atravessar na Av. Cruzeiro do Sul. Fonte: Vivian Reis, G1
Na isenção do poder público ou iniciativas privadas que se propõe enfrentar o desafio da mobilidade nas cidades brasileiras de forma inclusiva e buscando o benefício comum da sociedade, surgiram diversos grupos, coletivos e ONGs que se dedicam a contribuir para uma cidade mais democrática e acessível a todos, por meio da mobilidade.
Graças ao trabalho desses grupos foi possível superar alguns paradigmas e dar voz e visibilidade à iniciativas de vanguarda que são desenvolvidas em toda a cidade, mas principalmente, territórios periféricos: a adversidade e descaso do poder público impõe constantemente um protagonismo comunitário.
Em 2017, o IVM – Cidade em Movimento lançou o Concurso Passagens Jardim Ângela, que chamava a atenção para a microacessibilidade e os deslocamentos a pé no bairro localizado na zona sul de São Paulo.
Visita ao Jardim Ângela durante Workshop Internacional. Foto: Raphael Poesia e Bruno Andrade
Apesar do distanciamento socioeconômico estrutural entre diversos países do globo, o advento das tecnologias ligadas à mobilidade urbana, como o carro autônomo, é assunto em toda a parte. Seria essa tecnologia a solução para os acidentes e mortes no trânsito?
Frente a isso, especialistas já vem argumentando que dar autonomia de decisões ao carro pode gerar um grave problema: lembrando que os computadores são programados por seres humanos, é praticamente impossível cobrir todos os tipos de situações que podem se apresentar durante o trânsito. Ainda há o desafio de lidar com as intuições humanas morais sendo governadas por uma máquina.
Demonstração do carro autônomo na região leste de Londres. Foto: PHILIP TOSCANO/GETTY IMAGES
Mas será esse o futuro das cidades?
No Brasil, onde ainda há muito o que se fazer no que se refere à infraestrutura básica de mobilidade urbana é fundamental estar atento a um fato: os sistemas de transporte público e individual ainda ignoram que todo passageiro é pedestre!
Os veículos hoje carregam pedestres. Os veículos de amanhã, autônomos ou não, continuarão deslocando pedestres pela cidade. Caminhar é ocupar e calçada é espaço público, onde a vida deve acontecer!
Portanto, pra além das invenções tecnológicas, um dos impulsos humanos mais primitivos – o de levantar-se e caminhar – sem dúvida, sempre fará parte do futuro das cidades.