ANDRÉS BORTHAGARAY¹
O discurso dos direitos tem se difundido cada vez mais no âmbito das cidades, tanto na comunidade acadêmica quanto no mundo político. No entanto, ele tem conotações particulares na América Latina, onde à visão introduzida por Lefebvre e outros autores se acrescenta uma afirmação normativa de direitos. Mas esta vontade legislativa não se reflete necessariamente no tratamento do espaço da mobilidade. A incorporação dessa perspectiva fornece subsídios para enriquecer o discurso por meio da análise de casos – tais como o da Avenida 9 de Julho em Buenos Aires e da Vespucio em Santiago do Chile – e de elementos analíticos de avaliação de projetos de mobilidade para a definição das prioridades de deslocamento. Assim, se apresentará aqui uma análise das relações entre determinadas referências teóricas, referências normativas, referências de casos emblemáticos e critérios de análise. Deste modo, se desenvolverá a ideia do direito à mobilidade, fio condutor da ação do Instituto Cidade em Movimento (Institut Pour la Ville en Mouvement – IVM), como um direito à qualidade do espaço, do tempo, das formas e do governo da mobilidade.
Em primeiro lugar, se estabelecerão algumas definições do direito à cidade e à mobilidade. Em segundo lugar, e já em relação com o sujeito desse direito, se verá como ele afeta os diferentes grupos de cidadãos. Em terceiro lugar, se propõe uma relação com a normativa local. Por fim, como conclusão, os desafios para uma abordagem interdisciplinar.
O direito pode ser entendido de diversas maneiras: como a liberdade, como garantia, como questão social, como obrigação. Nestas diferentes acepções, podemos falar do direito à cidade, à mobilidade, à informação. Aqui, vamos desenvolver essas ideias em relação ao sujeito desses direitos e às normas em nossos países.
1- O direito como liberdade
Já nas primeiras definições do Institut Pour la Ville en Mouvement (IVM), Le Sens du Mouvement, compiladas por François Ascher, se distinguia o direito como liberdade do direito como garantia (Ascher, 2004).
O direito de deslocamento. De mover-se sem autorizações internas. Uma conquista consolidada nos países democráticos.
Destacou-se a citação: “O ar da cidade nos torna livres”, adágio medieval recuperado por Max Weber.
Pois bem, como se garante esta liberdade numa sociedade altamente urbanizada, com altos níveis de congestionamentos, necessidades de arbitrar o uso de um espaço finito e recursos finitos?
Quando não se garante, isso se deve à falta de normas, à falta de planejamento, a um desenvolvimento espontâneo ou a erros de planejamento? Basta o que está estabelecido nas normas, ou é necessário desenvolver uma ação positiva para que ela possa alcançada?
2- O direito como garantia
Conforme definido por Robert Pelloux, “cabe ao indivíduo o direito de exigir desempenho por parte da sociedade ou do Estado: o direito ao trabalho, à educação, à saúde”. ²
Este conjunto de direitos foi consagrado como parte integrante do Estado de Bem-Estar, especialmente na segunda metade do século XX.
A interpretação dos direitos e liberdades, individuais e coletivas, se cruza no caminho. Por exemplo, a velocidade (no trânsito) e os riscos relacionados a um limite muito alto. Liberdades individuais e coletivas em que se deve arbitrar em função do bem comum. Por exemplo, como explica o relatório da OMS sobre segurança viária em 2015, um pedestre adulto tem menos de 20% de chance de morrer se for atropelado por um carro a menos de 50km/h, mas quase 80% de chance de morrer se o automóvel estiver a 80km/h.
3- O direito como obrigação
Assim, se geram responsabilidades individuais nos comportamentos – como resposta a estímulos, do tipo “pau e cenoura”. Quando se aceita que estas responsabilidades não serão respeitadas e que não haverá capacidade para fazê-las respeitadas, se paga um custo social muito alto. Por exemplo:
-Quando postes são colocados no limite entre a calçada e a rua para evitar o uso invasivo desses espaços como estacionamento, em Paris ou outras cidades francesas. (E. Charmes, 2006). Esta solução consome uma grande quantidade de espaço precioso na cidade e, em particular, na calçada. Outras sociedades podem resolver esse problema com o simples respeito às regras. Cita-se, em particular, o exemplo do Japão, onde as regras de convivência não requerem aquele tipo de mecanismo ineficiente para ser respeitadas. Admitir a crise de governabilidade da rua tem um custo muito elevado para a sociedade.
-Lombadas ou redutores de velocidade. Admitir que não se pode conseguir que os motoristas observem um limite de velocidade, que o seu comportamento não será capaz de levar em conta as regras e que os diferentes mecanismos de sanção são impotentes para que a lei seja respeitada também significa um custo social muito elevado. Este pode ser medido no custo da construção, nos reparos adicionais de amortecedores quebrados, no perigo de frear se não se percebe antes a sua presença e no risco que se corre por aceitar essa impotência social.
4- O direito à cidade, direito à mobilidade
Desde a Grécia antiga – nos textos clássicos sobre a política, que eram textos sobre a cidade – até a valorização de um novo conceito sobre o direito à cidade, o discurso dos direitos vem ganhando lugar. Tem-se sugerido que o acesso às oportunidades da cidade permite identificar valores intrínsecos, que não são os mesmos que existem para outros âmbitos. Particularmente no contexto de um quadro teórico vinculado aos modos de produção da cidade, desenvolvido por Henri Lefebvre, David Harvey e outros, têm sido muito criticados os desenvolvimentos que tem adquirido o urbanismo contemporâneo até a década de 1970.
Assim, este direito é sacrificado quando o planejamento da cidade resulta em contrastes e barreiras que aumentam a segregação. Por exemplo, quando se paga o custo da velocidade e a segregação social no tratamento do espaço. Quando se produzem pressões no mercado imobiliário que tornam cada vez mais difícil o acesso à cidade. Quando uma infraestrutura urbana trata de forma discriminada os bairros por onde passa, como a Avenida 9 de Julho, em Buenos Aires, ou a Vespucio Avenida, em Santiago do Chile. É certo que essa ideia está evoluindo, e na primeira foram feitas transformações que expressam uma forma diferente de medir as decisões.
No contexto ibero-americano, tanto das instituições quanto da política, é cada vez mais comum encontrar alusões diretas ou indiretas a esse discurso. A tentativa de criar um espaço urbano integrador é a tentativa de ter lugares e tempos de qualidade para a mobilidade. Assim, a revolução das infraestruturas pode jogar a favor ou contra os direitos.
Mas o que significa um espaço de qualidade? Um espaço para caminhar, seguro, onde acontecem mais atividades do que as estritamente necessárias (J. Gehl, 2014, Cidades Para Pessoas). Onde se leva em conta questões como sombra, paisagem, possibilidades de encontros. Onde os lugares de passagens e de espera, como diferentes estações de transferência, têm qualidade e ajudam a nos mover de um lugar a outro. Onde se pode deixar um veículo e pegar um outro, por exemplo, uma bicicleta.
A governabilidade dos espaços de mobilidade requer das instituições articuladoras uma visão transversal (Estèbe, 2006).
“(…) De repente, um sistema único para governar as cidades perde sua credibilidade. Dois regimes se insinuam: o da cidade-centro, socialmente misturada e orientada para a competência econômica, e o da cidade periférica, socialmente homogênea e orientada para os serviços às pessoas (…)”.
A forma de considerar estes espaços varia em nossas cidades entre lugares de primeiro mundo e lugares totalmente abandonados, onde o número de pedestres mortos em acidentes pode ser completamente distinto. Juan Carlos Dextre (2013) desenvolveu em profundidade estes contrastes entre os bairros de Miraflores e os da periferia de Lima, ainda que o exemplo também se aplique a uma vasta gama de cidades latino-americanas. Por exemplo, a “visão zero” em mortes de pedestres, que força as obrigações.
A chamada “Visão Zero”, expressão que implica que não se trata mais de estabelecer metas que façam diminuir o número de acidentes fatais por ano, especialmente de pedestres, mas de reduzi-los a zero, é originária da Suécia. Logo foi adotada, entre outras, pela cidade de Nova York. Isso significa uma mudança drástica de medidas nas responsabilidades dos motoristas e no desenho da infraestrutura (raios de giro mais apertados, calçadas mais estreitas) e redução de velocidades máximas (a 40 milhas ou 25 km por hora).
Dentro do direito à mobilidade está o direito à informação. Por que alguns tipos de cidadãos são objeto de uma melhor qualidade de informação do que outros? Embora seja incompleta e muitas vezes inadequada para o tempo que existe para lê-la, as estradas e infraestruturas viárias atendem em parte os requisitos internacionais de informação. Os sistemas sobre trilhos são geralmente bem dotados de informação do próprio sistema. Os metrôs, por exemplo, por ter poucas linhas e uma lógica bastante compreensível, são fáceis de entender. Mas quando passamos para o sistema de ônibus, para não falar do de pedestres ou ciclistas, a vida se torna muito complicada para aqueles que não são usuários frequentes de um trajeto. Estes últimos são, paradoxalmente, a grande maioria dos usuários. E, além disso, são também experiências pelas quais costumam passar aqueles que fazem determinados trajetos de carro.
Assim, uma questão democrática fundamental, como o direito à informação, parte do direito à mobilidade, é muitas vezes muito pouco observada para uma grande maioria dos usuários. Se o problema já é difícil para o público em geral, torna-se muito mais difícil se levarmos em conta a população com necessidades especiais. Por isso, em outro momento se falava em pactos de mobilidade para desenvolver mecanismos de consulta entre os diferentes atores e hoje se fala de um pacto de acessibilidade.
5- O sujeito do direito à mobilidade
A mudança de transporte e trânsito para mobilidade é um conceito profundo. Em vez de pensar nos fluxos e nos veículos, pensamos em como as pessoas se movem. De acordo como consideramos esse sujeito, altera-se a resposta a um conjunto de questões que a Justiça é chamada cada vez mais frequentemente a dirimir.
Quem tem esses direitos? Quem dorme e vota numa determinada cidade ou quem vem e trabalha nela todos os dias? Quem paga e quem se beneficia com as decisões públicas sobre a mobilidade? Como é o sistema de subsídios, tarifas, equações de investimentos e de operação? Como se insere num contexto socioeconômico mais amplo? Quanto espaço é dado, na proporção, àqueles que se deslocam de uma forma ou de outra?
Um exemplo gráfico é pensar quantas pessoas podem passar num trecho de três metros durante uma hora, de acordo com o modo deslocamento que escolhem. Segundo dados da APUR (Atelier Parisien d’Urbanisme), cerca de 1.500 pessoas usam automóveis, 4 mil, um ônibus tradicional; 10 mil andam pé, de bicicleta ou de trólebus; 15.000, de bondes; 20 mil a 40 mil, de metrô; e mais de 70 mil, em trem (por exemplo, RER A, em Paris).
Esta é uma questão essencial quando se fala de direitos. Por exemplo, em grandes áreas metropolitanas se fala do direito ao sono, porque só podem votar aqueles que dormem num lugar e não quem trabalha ali. (Alain Bourdin)
Se se analisar os beneficiários de uma determinada infraestrutura com um maior nível de informação, se observará que, embora se tenha passado a avaliar em termos de pessoas em vez de em função de veículos, ainda há muito a aprofundar. Por exemplo, por idade, por gênero, por renda. Nos acessos por autoestrada à cidade de Buenos Aires se fez uma medição apontando que apenas 20% eram mulheres dirigindo (CoPE, 2007), enquanto que no transporte público a distribuição por gênero era muito mais próxima de 50% (Intrupuba).
Em termos de idade, as crianças não dirigem e apenas uma parte dos idosos com renda suficiente o fazem. Além disso, se se pensam as distâncias de acesso ao transporte público ou o tempo de atravessar uma rua nos termos de uma pessoa em plena capacidade e condição física, ficarão de fora todos aqueles que têm um tipo diferente de capacidade, permanente ou transitória.
6- O contexto normativo regional
Na América Latina, levamos o discurso dos direitos às normas, em legislações muito avançadas (por exemplo, na Constituição do Brasil, na Constituição da Cidade de Buenos Aires, em leis avançadas de mobilidade).
No entanto, ao mesmo tempo, há um forte desafio às instituições, aos processos de gestão, à alocação de recursos. Por exemplo: em Buenos Aires se cobra uma taxa por congestionamento, invocando o antecedente de Londres, por parte das concessionárias de autoestradas. À diferença de Londres, os fundos são reinvestidos nas rodovias – e são gastos fora do sistema orçamentário e dos controles públicos.
E na gestão de subsídios ao transporte nas grandes cidades? Quem os paga? Para onde vão? Valem apenas no transporte públicos ou em todos os modos de deslocamento? Quanto paga um motorista de automóvel de seu deslocamento? Como assinala Vuchic (1999), as externalidades têm um custo que o motorista de automóvel não paga. Apesar dos gastos com combustível, eventualmente do pedágio e estacionamento, o motorista só assume uma parte do custo de um deslocamento. Quanto vale o espaço ocupado por seu carro? Como as normas o incorporam?
A questão é se as grandes rupturas tecnológicas vão mudar esta situação. Com carros que passam de “softwares sobre rodas” para “internet sobre rodas”. E com uma questão energética e ambiental que coloca nova pressão sobre os deslocamentos.
Conclusão
A mobilidade está se convertendo numa demanda primária e crescente da sociedade. Ela impacta os acordos federativos. Desafia os limites entre o público e o privado, com novos esquemas de PPP (parcerias público-privadas), novos sistemas de serviços por demanda (como o Uber). O papel do Estado está mudando e ainda não terminou de se adaptar às novas exigências.
O campo do direito à mobilidade requer uma abordagem interdisciplinar. A oportunidade oferecida por este seminário é um passo nessa direção.
(1) Diretor para a América Latina do Instituto Cidade em Movimento (IVM). Membro do comitê acadêmico, mestre em Gestão Ambiental Metropolitana, FADU, UBA. Membro da rede Habitat sobre o Futuro da Forma Urbana, coordenado por KHT, Estocolmo. Ex- sub secretário de Descentralização, Transporte e Trânsito e Planejamento Estratégico na cidade de Buenos Aires. Arquiteto, graduado na Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo da Universidade de Buenos Aires e Diploma Internacional em Administração Pública, pela École Nacionale D’Administration (ENA), França.
(2) Cadernos do Conselho Constitucional, França.