Mobilidade: um desafio para as cidades

Por Mireille Apel-Muller, secretária geral do IVM INTERNACIONAL*

As cidades estão crescendo a um ritmo acelerado, que in­clui mutações extraordinárias em muito pouco tempo. As práticas sociais do território mudaram quase radicalmen­te. Não é raro, nas cidades latino-americanas, ver pessoas que caminham horas para ir e voltar do trabalho. Nesta era urbana, as distâncias percorridas vão aumentando. Em um mundo competitivo e de produção de imagens, a moderni­dade dos novos sistemas de transporte e da multiplicidade dos modos alternativos é uma questão emergente.

No entanto, as velocidades e os modos de transporte múlti­plos, os variados tipos de urbanização e a fragmentação da paisagem urbana complicam muito a compreensão da organi­zação da cidade e das suas redes de relações. Dar aos usuários das cidades senhas para que possam ter acesso aos recursos urbanos é um desafio econômico, social e educativo para as cidades do século XXI. Antes da informação, o conhecimento do seu ambiente: tornar a cidade legível para todos e cada um é responsabilidade de todos os atores da gestão urbana e, par­ticularmente, dos designers.

Existem barreiras complexas para comunicar mudanças e movimentos às pessoas. Mas também existe uma contribuição histórica do design em como orientar uma sociedade que necessita encontrar as suas referências. Organização espacial, paisagem, mapas, sinalizações, placas, mobiliário urbano, logos, slogans, informação não são elemen­tos independentes. Partir da pessoa no coração do sistema per­mite combinar e articular os diferentes sistemas de informação e de sinalizações colocados a serviço do indivíduo que se loco­move: na verdade, essa pessoa é, alternativamente, morador, transeunte, turista, pedestre, usuário de transportes públicos… A tecnologia, a arte, o design gráfico, os sistemas de informa­ção e de pedagogia, os espaços urbanos têm de se articular para formar um sistema legível à escala urbana – e não apenas da perspectiva de um prédio, um bairro histórico ou de uma for­ma de transporte monofuncional.

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O viajante que sai do metrô também necessita de informações na rua. A qualidade dos símbolos contribui para a imagem global da cidade. Uma cidade em movimento, desde o underground até o skyline, passando pelo groundline. De fato, a tecnologia ofe­rece um modelo novo de expressão para os designers. Ao abrir as informações ao grande público (projetos, informação sobre os horários do transporte em tempo real, os locais para esta­cionamento disponíveis, os estabelecimentos de comércio, o patrimônio arquitetônico, as áreas verdes, etc.), as cidades e os diferentes prestadores oferecem um terreno de inovação e de criatividade aos designers da informação. Hoje, nenhum sistema nem elemento de informação pode ser autossuficiente: devem se comunicar entre si e com o próprio espaço público e suas referências.

Design na era da tecnologia da informação

O século XX, apesar de uma série de exemplos pioneiros de qualidade, não chegou a integrar homogeneamente os elemen­tos de informação nas cidades latino-americanas. O século XXI arrasta um desafio pendente, mas com uma ferramenta nova: a oportunidade de articulação e de interconexão entre os sistemas, para fazê-la compreensível na sua complexidade, articulando seus diferentes suportes. As contribuições do design para oferecer as referências que permitem se orientar são indiscutíveis. A história da represen­tação dos sistemas cada vez mais complexos de deslocamento nas cidades tem ferramentas analíticas (como a numeração das ruas de Paris depois da Revolução Francesa, no lugar dos íco­nes que ajudavam a distinguir os imóveis e estabelecimentos de comércio), a abstração de escala nos planos de transporte público (a partir de Harry Beck, nos anos 1930), a forma de sintetizar as imagens das ruas, a forma de expressar as imagens de trânsito, as estações ferroviárias e os aeroportos. Mas esses avanços, que nem sempre atingem todas as pessoas, em alguns casos deixam de lado a população mais vulnerável. Em outros locais, não chegam a todas as latitudes, meios e bairros.

Os designers intervêm em um contexto de referências no es­paço público. Aldo Rossi, em La Arquitectura de la Ciudad (A Arquitetura da Cidade), distingue entre elementos que corres­pondem à esfera pública e privada. Por um lado, os monumen­tos. E, por outro, as áreas residenciais que configuram a malha básica da cidade. Essa divisão permitiu a revalorização do mo­numento como um marco privilegiado para definir a imagem e a característica da cidade. Kevin Lynch, antes disso, tinha feito referência ao critério da legibilidade do contexto. Ele defende a necessidade de cons­truir um ambiente pensado para o “homem na rua”, como um pré-requisito para uma conduta que permita desfrutá-la. Essa exigência pode não necessariamente coincidir com os aspec­tos relacionados ao ambiente organizado quando desenhado como mapa. Ele também aponta a necessidade de considerar o olhar desde a rua e da própria rua, como um critério de re­ferência do meio.

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Dessa forma, a respeito da dupla referência entre as diferentes representações e o espaço público, há um conjunto de elemen­tos que devem interagir. Nas palavras de Ronald Shakespear, falando da sua experiência: “A informação deve fornecer uma perspectiva dinâmica, capaz de se adaptar às mudanças do meio e às complexidades do sistema que regulamenta e, princi­palmente, deve ser apreciável e amigável. O objetivo final, logi­camente, é representar a realidade de determinado volume de informação – por exemplo, de um sistema de transportes – de forma clara. Uma vez alcançado isso, essa informação deverá fornecer incentivo e identidade”. É verdade que, quanto maior a complexidade das viagens, maior a sofisticação das ferramentas necessárias para se orien­tar. Os navegadores por satélite começam a ser um elemento da vida cotidiana. Não apenas “para nos levar aonde não sabe­mos ir, mas também navegadores que nos auxiliem em tempo real”.


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A forma como cada um constrói um mapa na sua mente varia de geração a geração. Como afirma Marcos Rodrigues, professor na Universidade de São Paulo, as pessoas baseiam-se em dois métodos diferentes para compreender o espaço. Em um deles, cria-se um mapa cognitivo utilizando a sua memória espacial. A pessoa recolhe seletivamente figuras de ambientes tais como parques, edifícios, negócios e armazena a relação entre as suas localizações. No outro mecanismo, ao percorrer várias vezes um caminho, o indivíduo desenvolve uma memó­ria procedimental. Um é mais repetitivo; outro, mais criativo. Cada um desenvolve uma relação própria com os navegadores. Mas, embora os navegadores estejam ainda na sua infância, al­guns efeitos possíveis do seu uso generalizado podem ser pre­vistos. De fato, surgem aplicações concretas, como o Kick Map para usuários de iPhone em Nova York. Existem novidades tecnológicas, mas em muitos casos a verdadeira novidade con­siste na sua aplicação em novos usos. Por exemplo, os satélites, o GPS que agora é acessível a praticamente todos, os sistemas Bus Rapid Transit (ou BRT), para os quais a gestão da informa­ção é chave. Sobretudo, as novas tecnologias serão mais úteis na medida em que forem somadas às outras referências. Mas como pode ser lida a construção de áreas novas da cidade, que atraem a requisitada “classe criativa” e onde todos que­rem construir? Qual é a narrativa que permite interpretá-los de uma determinada forma? Peter Hall, renomado urbanista britânico, durante uma apre­sentação em abril de 2011 sobre novos paradigmas para gover­nar cidades e regiões, coorganizada pelo Instituto para a Ci­dade em Movimento (www.cidadeemmovimento.org/dev) , aponta quatro critérios de desenvolvimento da cidade contemporânea: a economia, dentro de um contexto de reestruturação global; o meio ambiente, dentro de um contexto de aquecimento global; a qualidade de vida harmônica (livability); e a criatividade, ge­rando inovação urbana. Nos exemplos de novos bairros que se inscrevem nessas ten­dências, há um conceito de design baseado no desenvolvimen­to sustentável, com baixa dependência dos combustíveis fós­seis e uma relação harmoniosa com a natureza. Mas também uma narrativa que facilita a sua leitura no contexto de desen­volvimento urbano e do branding das cidades.

Um desafio para as cidades

Em sociedades cada vez mais urbanizadas e comunicadas, a mobilidade adquire uma crescente importância. Os valores so­ciais que a sustentam se fazem cada vez mais críticos. Desse modo, os meios à disposição para o deslocamento das pessoas, bens e informação são um requisito imprescindível para se ter acesso à oferta urbana. No Instituto, definimos a mobilidade como um direito genérico, um direito para poder ter acesso aos outros direitos. A mobili­dade é determinante para as condições de acesso ao lar, ao tra­balho, à educação, à recreação, à cultura e às relações familiares. Consequentemente, a qualidade do tempo e do espaço do movi­mento transforma-se em um aspecto crítico da vida urbana, no qual o desenvolvimento de novas abordagens ganha um papel cada vez mais importante. Alguns exemplos concretos:

O atlas do transporte público para deficientes visuais ou pessoas com dificuldades visuais: para aqueles que não en­xergam ou que têm dificuldades para ver, um atlas do trans­porte público de Paris, com um exemplo particularmente de­senvolvido no bairro de La Villette, onde existiam os velhos matadouros e que hoje abriga a cidade das ciências.

Os trajetos escolares e as novas estações em Lima: para os menores, um sistema de trajetos escolares seguros, proposto por Pau Avellaneda e outros para Barcelona, Lima, Buenos Ai­res e outras cidades. De acordo com Juan Carlos Dextre, esse conceito forma parte de outro mais amplo, denominado “lin­guagem da vida”, em referência aos sinais de trânsito, em uma ação preventiva para reduzir o número de acidentes e mortes de pedestres, especialmente alto na América Latina. Outra co­laboração recente do Instituto é desenvolvida atualmente na cidade de Lima, em colaboração com o professor Dextre e com o apoio de um prestador de serviços de transporte (o novo Me­tropolitano), uma universidade (a PUC) e uma empresa (3M). A lição é a de que existe um grande desafio para os designers, em um campo ao qual não está incorporada a necessidade da informação, apesar da sua importância.

O direito dos pedestres: mas existe também uma dimensão mais geral da ideia de cidade legível, que são as referências para permitir a orientação de cada um. De fato, há necessidade de informação não coberta, especialmente quando se faz a trans­ferência de um meio de transporte para outro. Isso é algo que os turistas, muitas vezes habituados a dispor dessa informa­ção nas suas cidades de origem, lamentam em especial. Em um sentido mais amplo, Eric Le Breton, sociólogo e professor da Universidade de Rennes, fala sobre o direito dos pedestres como uma perspectiva a ser considerada. Assim, uma vez ins­talada a oferta, a demanda é bem-vinda por todos os usuários. Por exemplo, a informação no interior dos ônibus.

No interior dos ônibus portenhos: em Buenos Aires se re­aliza um teste-piloto com a linha de ônibus 132. Trata-se se uma linha emblemática no sistema de transporte metropoli­tano da cidade. Ela liga dois dos grandes terminais e corta vá­rios pontos importantes entre os bairros de Retiro e Flores. A informação a respeito do trajeto da linha no interior do ônibus deu a palavra ao usuário, e a informação foi sendo enriquecida progressivamente. As autoridades declararam a experiência de interesse; os prestadores participaram ativamente da sua im­plantação. A disponibilidade da informação sobre como com­binar um meio de transporte com o outro é de especial impor­tância. Devido às suas características, trata-se de um projeto que pode ser reproduzido e é de alto impacto; ele supre uma necessidade e necessita de contribuições críticas que permi­tam realimentar o seu desenvolvimento. Ronald Shakespear, coautor de um projeto de identidade visual de Buenos Aires, contribuiu, a partir da sua experiência de 50 anos, com um artigo especialmente escrito para o Instituto no qual abordava essa questão (disponível, em espanhol, no site www.cidadeemmovimento.org/dev). Saber ouvir e colocar o usuá­rio no centro da questão são duas mensagens-chave.

 

Não há cidadania sem informação, nem informação sem pla­nejamento, como afirma Joaquim Redig. E nesse ponto exis­te uma enorme responsabilidade social do designer. Assim, a ideia de design – e de deslocamento – não termina no ato de ir de um local para outro. Em muitos casos, trata-se de ter aces­so a um serviço, não apenas a um local. Como afirma Andrea Gutiérrez, geógrafa da Universidade de Buenos Aires e mem­bro do conselho científico do Instituto, é necessário incorpo­rar o conceito de viagem útil ao design. Mesmo os serviços gratuitos, como o atendimento materno-infantil, com grande esforço público e de grande importância social, podem acabar sendo inacessíveis. Per Mollerup fala de Wayshowing. Aqui, temos um caminho para mostrar, em um campo onde o design latino-americano ainda não investiu toda a sua capacidade . Temos a convicção de que a “cidade legível” tem todos os ele­mentos para ser um grande projeto, talvez o projeto no qual o conhecimento dos designers tenha mais lugar do que todos os desenvolvidos até o momento. Em um contexto rico e criativo como o brasileiro, esperamos – por meio de concursos, asso­ciações com universidades e empresas, testes-piloto e inter­câmbios internacionais – aportar uma nova plataforma, desde que se possa contribuir para satisfazer uma necessidade social com o melhor do design e da tecnologia.

    *   Publicado originalmente em D2B DesignToBranding Magazine | GAD