Mãos à obra

Joaquim Redig

Uma vez, a revista Desktop (Abril-Maio 2010, Ano XX Nº 115, p.31) me pediu, assim como a outros designers, para completar a frase: “Design é …
Fiquei imaginando possíveis respostas para esta pergunta tão singela.
Uns diriam que Design é o mundo da beleza, outros da funcionalidade, outros da técnica – aliada à beleza e/ou à funcionalidade. Outros dirão que é o que está na moda. Outros, mais modernos, militantes do “Design Thinking”, dirão que é uma forma de pensar e resolver problemas.

Preferi responder que Design é um Direito do Cidadão. Assim, em caixa Alta e baixa, para destacar cada palavra, isto é, cada parte da resposta.

Quando pela primeira vez o IVM me chamou para colaborar com um projeto intitulado “Cidade Legível” aceitei imediatamente, apenas por causa do título, antes mesmo de ouvir detalhes sobre seus objetivos e programas. Porque, há muito, penso que a Legibilidade da Cidade é um Direito do Cidadão, e uma tarefa (ou missão) do Design. E penso nisso porque tenho trabalhado com isso, junto a urbanistas e arquitetos, em diversas cidades, em diversas oportunidades (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Maceió, Penedo, Coruripe, Barra de São Miguel, Marechal Deodoro, São Miguel das Missões, Havana e Buenos Aires, entre outras).

Mais do que aceitei, me aliviei e me alegrei. Afinal, os urbanistas percebem que a cidade é também, um meio de comunicação. Os letreiros comerciais modulados nas fachadas do Conjunto Nacional em Brasília, previstos pelo urbanista Lúcio Costa, é um dos poucos exemplos dessa relação explícita urbanismo/comunicação – porém específico, localizado e microscópico, diante da dimensão do problema. Depois de 100 anos de crescimento em progressão geométrica os meios de comunicação visual urbanos não poderiam mais passar desapercebidos aos que projetam o espaço público. O aumento da complexidade da malha metropolitana exige sobrepor-lhe uma malha de informação, para poder compreendê-la, ou melhor, decifrá-la. Mas nem sempre essa malha de informação, existe, e quando existe, é cheia de buracos. O projeto Cidade Legível quer cobrir esses buracos, suprir essas lacunas.

Antigamente, ao chegarmos ao aeroporto de carro, por um lado do prédio, já víamos o balcão de check-in e, do outro lado, a pista – e quem sabe até o avião, nos esperando. Ainda é assim nos aeroportos menores. Mas para circular em Guarulhos, Heathrow, ou Narita, ou em metrópoles como São Paulo, Londres ou Tóquio, não há lógica arquitetônica ou urbanística que dê conta da compreensão desses espaços, dada a sua escala e quantidade de módulos componentes, e não há como se movimentar neles sem o auxílio de sistemas de informação visual, que o decodifiquem para os usuários.

Os designers (alguns com formação em arquitetura) perceberam isso na segunda metade do século XX: nos anos 1970, quase ao mesmo tempo, Aloisio Magalhães no Rio de Janeiro, Cauduro/Martino em São Paulo, Ruiz/Shakespear em Buenos Aires, Adrian Frutiger em Paris, e Jock Kinneir na Grã-Bretanha, e suas equipes, estavam realizando projetos de sinalização pioneiros nessa área. E seus precursores já o tinham percebido na primeira metade do século, como o alemão Otto Neurath, inventor da pictografia, nos anos 1930, e o inglês Harry Beck, inventor da cartografia pública de transporte, com o famoso projeto do mapa do metrô de Londres, de 1933, paradigma mundialmente inevitável nessa área, até hoje.

Os processos de comunicação não fazem parte da formação nem da prática convencional de arquitetos e urbanistas. O profissional mais perto deles que domina esse tema é o designer gráfico, ou de comunicação, que, dentre outros meios, trabalha com o projeto de sistemas informativos cromático-tipográfico-pictográfico -cartográficos-diagramáticos – ou seja, baseado em cores, letras, sinais, mapas e diagramas. Nesse campo, somos parceiros indissociáveis dos urbanistas, como o são também o luminotécnico, o sanitarista, o paisagista, o engenheiro civil.

Este é só um lado da questão, o da competência técnica – competência num duplo sentido: primeiro, no de definir a quem compete a tarefa, e segundo, no sentido de sua capacidade de realizá-la com sucesso.

Mas há outro lado dessa história que é, para mim, igualmente mobilizador, que se refere à função principal do design, ao âmago da nossa profissão: atender ao usuário. Infelizmente, não vejo essa função se realizar na prática tanto quanto era de se esperar, nem mesmo na área do consumo privado (quando podemos escolher o produto que vamos usar), menos ainda na área do design de uso público (quando não escolhemos, mas somos obrigados a usar os equipamentos e informações que o poder público nos oferece, ainda que indiretamente, através das empresas concessionárias).

É urgente que os três níveis do poder público – técnico, burocrático e político -, incorporem em seus trabalhos esta meta programática, esse compromisso social, essa consideração ética. Do contrário o stress urbano vai crescer e vão se acentuar os conflitos, até níveis cada vez mais perigosos – como sugerem as manifestações de protesto ocorridas no Brasil em 2013-14.

Para o designer, qualquer designer, este compromisso faz parte de seu dia a dia, ou deveria fazer. Mais ainda para o designer de objetos de uso público (seja de propriedade pública ou privada), inclusive bens de capital (que o usuário também não escolhe), quando esta consideração é multiplicada por milhões. São milhões de usuários de um mesmo produto (um ônibus, um orelhão, um quiosque, um semáforo, uma placa informativa, um balcão de caixa), diferentes pessoas que se alternam no uso, a cada hora ou minuto, todos os dias, em alguns casos 24 horas por dia!

Por isso, me parece inacreditável, de certa forma, que exista uma “corrente” do design que se intitule “Centrada no Usuário” (“User Centered Design”). Porque, na verdade, não há nenhuma diferença entre “Design Centrado no Usuário” e “Design”. Afinal, se não é no usuário, o design será centrado em quê? Design centrado no material? Design centrado na cor? Design centrado na forma? Design centrado na beleza? Design centrado na tecnologia? Design centrado na moda? Design centrado no meio-ambiente (ecodesign)? Tudo isso só faz sentido se for centrado no usuário, pois é para ele que se cria, se investe, se produz, se vende ou se dirige o produto – e se descarta também.

Mesmo nossos clientes, que nos contratam repetidamente (seja da área pública ou privada) teem dificuldade de perceber isso, e pensam que estão nos pagando para trabalhar para eles, quando, na verdade estão nos pagando para trabalhar para os clientes deles.

Meu cliente, quem me contrata, não é, por princípio, o destinatário do meu objeto de trabalho, do meu design (até pode ser, mas neste caso será um entre milhares ou milhões, dependendo da escala do produto em questão). Veja o caso do Metrô-Rio, para quem trabalhei no início dos anos 2000: tudo o que fizemos naquela época (que não existe mais) – a marca de identificação do sistema, os marcos nas entradas das estações, as placas de sinalização internas, a definição do mobiliário (bancos, lixeiras, etc.) -, tudo isso era destinado ao passageiro do metrô, e foi desenhado para ele, não para o presidente da companhia – que, geralmente, nem anda de metrô.

Como designer, trabalho não para o meu cliente, mas para o cliente do meu cliente. E preciso convencer meu cliente disso, para que ele me ajude (o cliente de verdade é nosso maior parceiro no projeto) a ajudar o seu cliente, seu freguês, seu comprador, seu consumidor, seu usuário, seu cidadão. Ajudando o cliente do meu cliente estou contribuindo para o progresso do meu cliente – aquele que me paga pelo projeto, o produz e o vende ou distribui. Quanto melhor ele servir aos seus clientes, mais vai vender, e mais clientes terá.

Vejam esses painéis eletrônicos luminosos dos ônibus urbanos atuais. Muito práticos, pode-se mudar a informação à distância, não é preciso trocar manualmente o letreiro antes do carro iniciar o percurso, são mais visíveis de noite e de dia (mais visíveis mas às vezes menos legíveis, pela precariedade da tipografia, mas isso é outro problema). Entretanto, apesar de todas essas vantagens, seu uso é péssimo! Era melhor ter ficado com os antigos, estáticos, mas que não nos enganavam (como ainda se usa em Buenos Aires, por exemplo, pintados, ou em adesivos, em conjugação com os eletrônicos).

Por serem programáveis à distância, parece que seus controladores brincam com o equipamento, e aproveitam para fazer auto-propaganda, ou passar uma imagem de bom serviço (independentemente do serviço efetivamente prestado), em vez de pensar na informação que os passageiros precisam.

Imagine que estamos esperando um ônibus no ponto. Como são muitos, e muito parecidos, dependemos da informação que vem nele escrita, para saber se, primeiro, fazemos sinal para ele parar, e, segundo, se embarcamos nele. Mas o ônibus se aproxima e o painel, que só comporta 1 informação por vez, em lugar de mostrar seus destinos, como “Copacabana” ou “Via Túnel Rebouças” ou “Estação Central”, diz coisas inúteis como “Boa Tarde” ou “Boa Viagem” ou, se for dezembro, “Feliz Natal”, ou pior, “Obrigado pela Preferência”. Quê preferência?? Eu não tomo o ônibus que eu prefiro, eu não escolho o meu ônibus, eu tomo o primeiro que aparece e que me leva, o mais rápido possível, ao meu destino, ou o mais próximo dele (e em muitos casos só há 1 linha possível). E prefiro dizer “Boa Tarde” diretamente ao motorista e ao cobrador, do que ao veículo, por mais que o ame e precise dele. Bom, intercalados entre “Boa Tarde, Boa Viagem, Feliz Natal e Obrigado pela Preferência”, o painel está programado para dizer também “Copacabana, Via Rebouças, ou Estação Central”, mas aí o ônibus já passou e não deu para ver – espero que, no próximo, caia para mim “Meu destino” em vez de “Boa Viagem” –Boa Viagem, sim, obrigado, mas… para onde?

Outro problema, ainda mais grave: As mensagens transmitidas, programadas previamente, cobrem todo o trajeto, mas só 1 informação aparece de cada vez. Assim, pode aparecer escrito na frente do ônibus o nome de um lugar pelo qual… ele já passou! Daí você embarca feliz, mas nunca vai chegar ao seu destino, que o ônibus te disse que chegaria. Quem conhece a cidade e o trajeto do ônibus não se engana, mas também não precisa de informação.

E se argumentarem que seria tecnicamente impossível coordenar o letreiro com o percurso do veículo, eu responderia que o instrumento deve servir à informação, e não o contrário.

Para piorar, há uma “animação” completamente inútil na entrada e saída das letras luminosas, fazendo-as movimentar-se alegremente ora da direita para a esquerda, ora de cima para baixo, ora de baixo para cima, o que retarda e perturba a leitura. Se alguém acha assim mais divertido, vá brincar de videogame, deixe os passageiros em paz – já basta o movimento do veículo, para, a ele, somar-se o das mensagens.

Veja você a quantidade de problemas que um aparato de uso público tão simples como esse pode oferecer – sem falar de outros problemas de design dos ônibus, como acessibilidade, conforto, visibilidade, ergonomia, segurança, climatização, sonorização, e sem falar da informação em geral, no veículo e nos pontos de parada, além dos terminais. E sem falar ainda nos problemas dos outros meios de transporte (metrô, trem, barcas, taxis, bicicleta). Nem nas demais áreas de necessidade (circulação de pedestres, ambientação urbana, equipamentos de lazer, sistemas de segurança contra delitos ou acidentes nas ruas e dispositivos de socorro, etc).

Um objeto como este – os letreiros dos ônibus –, que funciona desse jeito atrapalhado, está mesmo muito longe de representar um design User Centered. Trata-se mais de um design Client Centered, ou melhor, Stupid Client Centered, porque não pensa na necessidade do usuário, receptor da mensagem, mas na do emissor. E não seria uma estupidez emitir uma mensagem para si mesmo, e não para o receptor, em função de quem o emissor criou não só a mensagem, mas o próprio canal de comunicação?

Neste setor, do design público, é mais ou menos assim que se comportam quase todos os poderes públicos – e muitos privados também – na maioria dos países precários como os nossos, na América do Sul.

Vem então o componente de alegria, a que me referi. É alvissareiro que um grande grupo industrial como Peugeot-Citröen, cujo produto é o meio de transporte, resolva dedicar-se a pensar nesses temas – que, direta ou indiretamente, teem muito a ver com sua produção. E crie uma entidade como o IVM para pesquisar e refletir sobre eles, no mundo inteiro, em conjunto com os especialistas multidisciplinarmente envolvidos no setor. E é estimulante que esta instituição tenha formulado um projeto voltado a corrigir estas distorções no campo da mobilidade urbana, a partir de seu próprio título –Cidade Legível-, colocando o usuário/cidadão/consumidor na sua posição de protagonista, diretamente interessado.

Embora desenvolver projetos não faça parte de seus objetivos, é, porém, necessário que o Instituto estabeleça ligações entre a vida cotidiana das pessoas e as reflexões que tem levantado, em seminários, publicações, encontros, coordenando ações de projeto e parceria entre os poderes públicos e os técnicos especializados, interdisciplinarmente, de modo que todo este esforço seja recompensado pela melhoria das condições de vida de nossas populações, cada vez mais urgente.

Os movimentos de protesto que tomaram conta do Brasil neste último ano revelam e recomendam essa urgência.

E alguns dos slogans que esses movimentos gritaram – como “por uma vida sem catracas” ou “país desenvolvido não é onde o pobre tem carro mas onde rico anda de transporte público” – representam verdadeiros programas de trabalho, para nós todos, não só no Brasil, em todo o continente.

Mãos à obra – e olhos também.


joaquim redig_FB

Joaquim Redig é designer formado pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial), Rio de Janeiro, 1968. Foi Designer e diretor técnico do escritório Aloisio Magalhães Programação Visual Desenho Industrial nos anos 60 e 70. É titular do escritório Design Redig Associados desde 1983, onde atua nas áreas do design industrial, design de sinalização e de identidade corporativa. Professor na PUC-Rio Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro desde 1975, é autor de três livros e artigos sobre design na imprensa especializada. Professor visitante e conferencista em diversas faculdades de Design no Brasil e na América Latina.